O título acima pode soar como um atentado ao bom senso, mas é verdade. Diversos vegetais considerados “saudáveis” podem na realidade funcionar como autênticos “venenos”, porque contém substâncias que nos impedem de conseguir o aproveitamento dos alimentos, substâncias essas conhecidas como “antinutrientes”. Infelizmente a noção de comida saudável na nossa sociedade vai à contramão das pesquisas científicas sobre o assunto.
Felizmente a noção de que devemos nos alimentar melhor está aumentando. Até as cadeias de fast food estão investindo em propagandas com alimentos pretensamente saudáveis.
A noção atual é que uma alimentação saudável é feita de pouca carne e gordura animal, e abundância de cereais integrais, leguminosas e verduras. Mas muitas vezes, dependendo de como esses alimentos são consumidos, podem se tornar uma fonte de mais problemas, e até desnutrição.
Vamos começar com a soja. Muita gente considera saudável o consumo da soja (vejam, por exemplo, esse site). Há no mercado uma gama de alimentos a base de soja, incluindo inclusive fórmulas infantis para bebês com base na soja.
Uma dieta saudável necessita de proteínas, que fornecem aminoácidos essenciais, fundamentais para o funcionamento do nosso organismo. Para podermos digerir proteínas, o pâncreas produz algumas enzimas, como a tripsina (que também é responsável por outra enzima que digere a carne, a quimotripsina). A soja é o vegetal que contém a maior quantidade de inibidores de tripsina, ou seja, a soja tem substâncias que impedem-nos de absorver as proteínas. Os inibidores de tripsina não inibem somente a tripsina, mas também outras enzimas digestivas como a quimotripsina, a elastase e várias outras enzimas.
A quantidade de inibidores de tripsina na soja integral chega a 27,2 mg em cada grama de soja, segundo alguns trabalhos científicos. Transformar a soja em pó não diminui a quantidade de inibidores de tripsina, pelo contrário, os inibidores ficam mais concentrados. A quantidade de inibidores de tripsina é tão grande que animais alimentados com dietas com base na soja ficam com hipertrofia do pâncreas (o pâncreas cresce para produzir mais enzimas).
Há algumas formas de soja que praticamente não contém inibidores de tripsina, como o tofu e o molho de soja (embora no molho de soja costuma-se acrescentar açúcar e glutamato monossódico, que não são saudáveis). A farinha de soja torrada contém bem menos inibidores, mas ainda uma quantidade considerável (até 9,4 mg por grama). O missô contém 4,1 mg por grama de inibidores de tripsina.
As fórmulas infantis com base na soja contêm menos quantidade de inibidores, 2,7 mg por grama de pó. Mas o impacto desses antinutrientes em uma criança em crescimento ainda está para ser avaliado. (Gilani GS, Cockell KA, Sepehr E. Effects of antinutritional factors on protein digestibility and amino acid availability in foods. J AOAC Int. 2005 May-Jun;88(3):967-87).
Outros antinutrientes importantes são os fitatos, ou ácido fítico. Os fitatos são conhecidos por diminuir a disponibilidade de diversos nutrientes, em particular o zinco (um mineral muito importante para o funcionamento do organismo, inclusive para a digestão de outros nutrientes) e o cálcio, diminuindo também a absorção de proteínas e aminoácidos. O maior problema com os fitatos é que eles se ligam a minerais e proteínas, produzindo complexos insolúveis (que não dissolvem), impedindo-os de serem absorvidos.
Os fitatos são os “armazéns” de fósforo nas sementes dos cereais e das leguminosas, mas esse fósforo não está disponível quando consumimos esses alimentos, ficando “guardados” até a germinação da nova planta. Portanto, as verduras praticamente não têm fitatos, enquanto que as sementes de cereais, legumes e oleoginosas são as que contêm a maior quantidade, sendo que a soja é a semente com maior quantidade. O lobby de diminuir a quantidade de gorduras na dieta e aumentar os grãos integrais provocou um aumento de fitatos na dieta. (Martínez Domínguez B, Ibáñez Gómez MV, Rincón León F. Ácido Fítico: Aspectos nutricionales e implicaciones analíticas. Arch Latinoam Nutr. 2002 Sep;52(3):219-31.).
Os fitatos aparecem também na casca do arroz, no cotilédone da ervilha e no germe do milho. Os fitatos ligam-se a diversos minerais além do zinco e cálcio já falados, como o potássio, o ferro, o magnésio e o manganês, o que pode ocasionar uma grande diminuição da absorção desses nutrientes.
O hábito de deixar de molho em água, antes do cozimento, o arroz e o feijão é bem saudável, já que reduz o índice de fitatos em torno de 20%. Deixar de molho a farinha de milho reduz a quantidade de fitatos em 50%. E se deixarmos de molho de um dia para o outro, para promover a fermentação natural, a quantidade de fitatos é reduzida em 90%. Comer brotos de sementes (como brotos de feijão) também elimina os fitatos, já que a planta produz enzimas (fitase) para dispor do fosfato durante o crescimento. O controle dos antinutrientes é fundamental na alimentação de crianças, em particular nas subnutridas. (Michaelsen KF, Hoppe C, Roos N, Kaestel P, Stougaard M, Lauritzen L, Mølgaard C, Girma T, Friis H. Choice of foods and ingredients for moderately malnourished children 6 months to 5 years of age. Food Nutr Bull. 2009 Sep;30(3 Suppl):S343-404)
Alguns vegetais como o espinafre contém também uma grande contidade de oxalatos, que impedem-nos de absorver minerais como o ferro e o cálcio. (Miller GD, Jarvis JK, McBean LD. The importance of meeting calcium needs with foods. J Am Coll Nutr. 2001 Apr;20(2 Suppl):168S-185S). Portanto esse vegetal, apesar de rico em ferro e cálcio, não disponibiliza esses nutrientes, devido ao antinutriente oxalato. Se o personagem Popeye existisse, com certeza ficaria mais fraco e não mais forte após comer sua porção de espinafre enlatado.
Finalmente temos as lectinas, proteínas vegetais que se ligam a carboidratos (açúcares), e são antinutrientes capazes inclusive de fazer “grudar” os glóbulos vermelhos do sangue (se você não sabe o que significa isso para a saúde, clique aqui). As lectinas são reservas de proteínas e podem funcionar com inseticidas naturais (há pesquisas sobre o uso de lectinas contra diversas pragas) e protegem as plantas contra agressões externas, desde micróbios, insetos ou animais. As lectinas são muito resistentes, e não são destruídas pelas enzimas da digestão nem pela acidez do estômago, resultando em lesões nas células e tecidos do sistema estômago e intestinos, interferindo com a absorção de nutrientes, alterando a flora intestinal e alterando inclusive o sistema imunológico (defesa) dos intestinos. Se consumida em quantidade alta, as lectinas provocam doenças e diminuem o crescimento de animais ou humanos que a consumiram. Há relatos inclusive de intoxicação aguda em humanos que consumiram a lectina através de uma espécie de feijão vermelho.
Estudos científicos já analisaram lectinas tóxicas do feijão, da soja, da ervilha, do gérmen de trigo, da jaca e do arroz. Diversas outras plantas que consumimos normalmente contém lectinas, como a cenoura, o milho, o alho, o amendoim, a beterraba, o chá, a salsinha, o orégano, além de frutas como nas cerejas. Portanto, é praticamente impossível não termos contato com as lectinas. Para evitar problemas, devemos evitar comer plantas com alta concentração de lectinas cruas ou pouco cozidas, e tomar muito cuidado com quantidades exageradas de sementes (como feijão) e cereais (como o trigo).( Vasconcelos IM, Oliveira JT. Antinutritional properties of plant lectins. Toxicon. 2004 Sep 15;44(4):385-403) (Sharon N, Lis H. History of lectins: from hemagglutinins to biologicalrecognition molecules. Glycobiology. 2004 Nov;14(11):53R-62R)
Após todos esses dados, vemos que os vegetais às vezes funcionam como vilões. Mas toda alimentação saudável deve ser baseada em vegetais. Então o que fazer para ter uma alimentação saudável? A primeira atitude é evitar alimentos processados, é bom desconfiar de todo alimento que tenha rótulo. Já é difícil ter uma alimentação saudável, e fica muito pior se ingerimos aditivos alimentares. Em segundo lugar, que me perdoem os vegetarianos, é que faça parte da dieta proteínas e gorduras animais, como carne, manteiga, iogurte, coalhada e ovos de aves criadas soltas. Não somos ruminantes, e muitos nutrientes essenciais são encontrados somente em produtos de origem animal. Em terceiro lugar, procure sempre que possível produtos orgânicos, vegetais sem agrotóxicos e carne sem hormônios e antibióticos. Em quarto lugar, não exagere nas sementes (leguminosas e oleoginosas) e cereais, e procure deixar de molho produtos como arroz, feijão, lentilhas e farinha de trigo ou milho. E por último, há a vitamina D, cuja maior fonte não é alimentar, é o sol (se ainda não leu, leia aqui e aqui)